"Quase consigo me visualizar no berço, quase consigo
reproduzir em mim a vaga e no entanto premente sensação de precisar pertencer.
Por motivos que nem minha mãe nem meu pai podiam controlar, eu nasci e fiquei
apenas: nascida.
No entanto fui preparada para ser dada à luz de um modo
tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante
espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença.
Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha
mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão
determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra
e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram por eu ter nascido em
vão e tê-los traído na grande esperança.
Mas eu, eu não me perdoo. Quereria que simplesmente se
tivesse feito um milagre: eu nascer e curar minha mãe. Então, sim: eu teria
pertencido a meu pai e a minha mãe. Eu nem podia confiar a alguém essa espécie
de solidão de não pertencer porque, como desertor, eu tinha o segredo da fuga
que por vergonha não podia ser conhecido.
A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse
para me dar a medida do que eu perco não pertencendo. E então eu soube:
pertencer é viver. Experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe
sôfrego os últimos goles de água de um cantil. E depois a sede volta e é no
deserto mesmo que caminho!"
(Clarice Lispector)
*Minha vida é pertencer.
2 comentários:
Uma vez ouvi isso em uma peça de teatro.
Outra frase sobre pertencer de um autor que vc curte é:
"Nunca é alto o preço a pagar pelo privilégio de pertencer a si mesmo."
Nietzsche
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