domingo, maio 05, 2013

Paralisia


A lua ia alta no céu quando Clara abriu os olhos. O quarto escuro, a cama quente marcada por seu corpo. A respiração levemente ruidosa de seu gato e o ar quente que saía de seu focinho úmido soprando em seu pescoço. Tentou mover os pés, um a um cada dedo, mas estes não respondiam. Sentia em suas costas o peso de uma vida, tentava arqueá-las, espreguiçando-se, tampouco a esse comando seu corpo respondia. Indagava-se se sonhava ou se havia realmente despertado.
Olhou as paredes do quarto, o velho pôster de seu filme favorito, a heroína gótica de hábitos duvidosos, mas caráter e valores inabaláveis. A gravura mostrando seu dorso nu, presente de um amigo havia tantos anos resgatado de uma mala antiga fazia poucas semanas... O ambiente lhe era familiar, somente seu corpo lhe parecia estranho naquele momento.
Tentou acordar as áreas de seu cérebro, as quais haviam de estar ainda dormindo, relembrando o que havia se passado nas horas anteriores aquele sono profundo. O dia de trabalho. A ansiedade. As ruas à noite. O café. A conversa sobre questões de gênero. O teatro. O longo diálogo sobre existência de Deus, fé, guerra e pulsões, ou ausência de tudo isso. A presença dele. A mão leve e quente por suas pernas sob a calça jeans. Seu cheiro. A parede gelada contra suas costas, e a pressão das pernas dele contra suas coxas. O beijo, a falta de ar. O adeus naquela noite. O metrô vazio e gelado. A casa em silencio. O banho fervente, como que para tirar-lhe cheiros e gostos, e o tato. A cama fria. O sono pesado, a falta de alternativa ou a impossibilidade do desejo. Madrugada alta, e seu corpo paralisado agora.
Relembrou alguns de seus últimos dias e se perguntava por que estava de novo se sentindo atada. Mais que isso, impossibilitada. Havia, por escolha, novamente se colocado numa encruzilhada entre suas vontades e o desejo de um homem. Seu corpo representava naquele momento sua impotência diante dele.
Concentrou-se nos dedos das mãos, o indicador da mão direita que estava próximo a sua boca. Conseguia sentir nele sua respiração? Pensou em movê-lo uma, duas, três vezes até sentir um arrepio descendo do ombro em direção à mão. O sinal de que seus músculos acordavam. A quantos minutos estava naquela posição? Parecia uma eternidade. Contraiu o abdômen, sentiu uma onda descendo pelas pernas e subindo pelos seus seios. Lembrava-se das mãos dele, do calor emanado delas, em seu ventre. Repetiu mentalmente aquela sensação por cada parte de sua pele, como um toque mágico que acordava cada célula, e aos poucos foi retesando o corpo, membro a membro, cada terminação nervosa, como um feixe mágico de luz percorrendo-a por dentro e sob a superfície de sua pele gelada.
Respirou fundo notando-se finalmente desperta. Com algum sacrifício, como se fosse pela primeira vez, virou-se de lado e foi parada por algo que resistia ao seu movimento. Não estava só na cama? Fechou e abriu os olhos novamente, estreitou a cabeça entre os travesseiros, esticou os braços, abriu as mãos e sentiu os pelos do peito dele sob os dedos e as unhas. Apertou-o com força, ele estava ali! Não estava só! Enroscou suas pernas nas dele, mais uma vez, seus pés gelados contra as panturrilhas dele. Seria difícil separa-los se assim morressem. Afundou o rosto entre os braços dele, respirou o cheiro de sua pele e de seu suor o quanto pode. Sorriu sozinha e, sentindo-se segura e em casa, voltou a dormir e a sonhar rindo de si mesma.

(Imagem: O pesadelo, de Henry Fuseli, 1781.)

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