A lua ia alta no céu quando Clara abriu os olhos. O quarto
escuro, a cama quente marcada por seu corpo. A respiração levemente ruidosa de
seu gato e o ar quente que saía de seu focinho úmido soprando em seu pescoço. Tentou
mover os pés, um a um cada dedo, mas estes não respondiam. Sentia em suas
costas o peso de uma vida, tentava arqueá-las, espreguiçando-se, tampouco a
esse comando seu corpo respondia. Indagava-se se sonhava ou se havia realmente
despertado.
Olhou as paredes do quarto, o velho pôster de seu filme
favorito, a heroína gótica de hábitos duvidosos, mas caráter e valores inabaláveis.
A gravura mostrando seu dorso nu, presente de um amigo havia tantos anos resgatado
de uma mala antiga fazia poucas semanas... O ambiente lhe era familiar, somente
seu corpo lhe parecia estranho naquele momento.
Tentou acordar as áreas de seu cérebro, as quais haviam de
estar ainda dormindo, relembrando o que havia se passado nas horas anteriores aquele
sono profundo. O dia de trabalho. A ansiedade. As ruas à noite. O café. A
conversa sobre questões de gênero. O teatro. O longo diálogo sobre existência de
Deus, fé, guerra e pulsões, ou ausência de tudo isso. A presença dele. A mão
leve e quente por suas pernas sob a calça jeans. Seu cheiro. A parede gelada contra
suas costas, e a pressão das pernas dele contra suas coxas. O beijo, a falta de
ar. O adeus naquela noite. O metrô vazio e gelado. A casa em silencio. O banho
fervente, como que para tirar-lhe cheiros e gostos, e o tato. A cama fria. O
sono pesado, a falta de alternativa ou a impossibilidade do desejo. Madrugada
alta, e seu corpo paralisado agora.
Relembrou alguns de seus últimos dias e se perguntava por
que estava de novo se sentindo atada. Mais que isso, impossibilitada. Havia,
por escolha, novamente se colocado numa encruzilhada entre suas vontades e o desejo
de um homem. Seu corpo representava naquele momento sua impotência diante dele.
Concentrou-se nos dedos das mãos, o indicador da mão direita
que estava próximo a sua boca. Conseguia sentir nele sua respiração? Pensou em
movê-lo uma, duas, três vezes até sentir um arrepio descendo do ombro em
direção à mão. O sinal de que seus músculos acordavam. A quantos minutos estava
naquela posição? Parecia uma eternidade. Contraiu o abdômen, sentiu uma onda descendo
pelas pernas e subindo pelos seus seios. Lembrava-se das mãos dele, do calor emanado
delas, em seu ventre. Repetiu mentalmente aquela sensação por cada parte de sua
pele, como um toque mágico que acordava cada célula, e aos poucos foi retesando
o corpo, membro a membro, cada terminação nervosa, como um feixe mágico de luz
percorrendo-a por dentro e sob a superfície de sua pele gelada.
Respirou fundo notando-se finalmente desperta. Com algum sacrifício,
como se fosse pela primeira vez, virou-se de lado e foi parada por algo que resistia
ao seu movimento. Não estava só na cama? Fechou e abriu os olhos novamente,
estreitou a cabeça entre os travesseiros, esticou os braços, abriu as mãos e
sentiu os pelos do peito dele sob os dedos e as unhas. Apertou-o com força, ele
estava ali! Não estava só! Enroscou suas pernas nas dele, mais uma vez, seus
pés gelados contra as panturrilhas dele. Seria difícil separa-los se assim
morressem. Afundou o rosto entre os braços dele, respirou o cheiro de sua pele
e de seu suor o quanto pode. Sorriu sozinha e, sentindo-se segura e em casa, voltou
a dormir e a sonhar rindo de si mesma.
(Imagem: O pesadelo, de Henry Fuseli, 1781.)
(Imagem: O pesadelo, de Henry Fuseli, 1781.)
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